Erik Lorincz
“Somos artistas. Se quiser, pode me chamar de Michelangelo.” A frase, dita pelo italiano Salvatore Calabrese, um dos mais conceituados barmen do mundo, traduz bem o momento vivido por esses profissionais: nunca na história o “cara do bar” foi tão cultuado e bem pago. Conhecido como “O Maestro”, Salvatore tem tratamento e status de celebridade na Inglaterra: há dois anos, foi escolhido pelo Ministério da Saúde do país para estrelar uma campanha de televisão contra a embriaguez no trânsito, ao lado do piloto de F1 Michael Schumacher. Também assina uma coluna mensal sobre bebidas na edição britânica da revista masculina GQ e é proprietário do bar mais exclusivo de Londres, o Salvatore at 50.
Nascido há 55 anos na Costa Amalfitana, na Itália, Calabrese foi para Londres, aos 15, como mais um imigrante sem perspectiva. Após conseguir um emprego de ajudante de bar, apaixonou-se pelas garrafas e pelos sabores e nunca mais parou: já são quatro décadas de carreira (ele diz ter começado a trabalhar aos 11 anos). “Existem três pessoas fundamentais em um restaurante: o chef, o sommelier e o bartender”, me disse Calabrese no final do ano passado em Atenas, na Grécia, durante o Diageo World Class, uma espécie de Copa do Mundo da coquetelaria. “O chef é um grande criador, mas nunca está em contato com o público. O sommelier tem um conhecimento memorável, nariz refinado, mas não cria nada. Nós, os bartenders, estamos a todo instante em contato com os clientes, temos o conhecimento profundo do sommelier e o talento criativo do chef.”

Ao lado de gente como o americano Dale DeGroff, o japonês Hidetsugu Ueno e o conterrâneo Peter Dorelli, Salvatore faz parte do time da vanguarda mundial da coquetelaria. Esses barmen-celebridades têm uma série de peculiaridades. Em primeiro lugar, deixaram há um bom tempo de dar expediente atrás do balcão. Entre outras coisas, a turma ganha dinheiro dando palestras sobre o assunto e consultoria a multinacionais de bebidas. Também criaram uma nova terminologia para diferenciá-los dos simples mortais fazedores de coquetéis. Eles gostam de ser chamados de mixologistas, ou seja, aqueles que dominam a arte da mixologia, que consiste em incorporar técnicas da gastronomia no preparo de drinques — como xaropes, caldas e espumas — e exige um imenso arsenal de conhecimentos sobre ingredientes e método de fabricação de destilados e fermentados.
“Quando comecei, no final dos anos 70, não sabia nada sobre drinques. Ninguém sabia. Tudo era tocado na base do ‘é assim que sempre se fez’. Em 1988, na hora de contratar funcionários, falava a eles: ‘Faça um curso de cozinha, aprenda a fazer um molho’. A maioria deles nunca havia espremido um limão na vida!”, diz Dale DeGroff, 62 anos, responsável por reinventar a profissão de barman graças ao seu trabalho inovador no famoso Rainbow Room, em Nova York, entre 1987 e 1999. Dale levou a gastronomia para dentro do bar e instituiu o uso de ingredientes frescos em detrimento dos industrializados. Autor dos livros The Essential Cocktail e The Craft of the Cocktail, um dos fundadores do Museu Americano do Coquetel, em Nova Orleans, criador e diretor da escola de mixologia Beverage Alcohol Resource, atualmente DeGroff é o profissional da área mais requisitado do planeta: presta consultoria a clientes como a rede de hotéis Marriott e as multinacionais de bebidas Pernod Ricard e Diageo.
As principais estrelas da profissão costumam fazer parte do corpo de jurados do Diageo World Class. A última edição do evento, acompanhada pela reportagem de ALFA, ocorreu em agosto na Grécia. O concurso durou cinco dias e trouxe para a competição 24 profissionais de diferentes países. Todos passaram por um intensivão de provas — conhecimento e capacidade de preparar coquetéis clássicos perfeitos, criatividade para preparar drinques usando ingredientes frescos encontrados no mercado, velocidade e técnica e habilidade em harmonizar coquetéis e canapés. Várias das misturas criadas pelos participantes eram geniais. Algumas, diga-se a verdade, me pareceram bizarras, como o martíni de salada caprese (com direito até a alface e azeitona maceradas). Entre uma e outra prova, rolavam festas sensacionais, capazes de deixar uma ressaca do tamanho do Partenon. Ao final, o título de vencedor ficou com o inglês Erik Lorincz. Eleitos como ele costumam virar uma espécie de Miss Universo da bebida. “Em menos de 12 meses, deixei de ser um bartender anônimo para me tornar um dos mixologistas mais reconhecidos do mundo”, afirma o grego Aristotelis Papadopoulos, vencedor em 2009. “Viajei por 15 países e prestei consultoria a vários bares na Europa e na Ásia.”

A transformação dos barmen em superestrelas começou a ocorrer junto com o estouro da gastronomia na grande mídia, no meio dos anos 80, nos Estados Unidos. “Antes disso, o bar era apenas o lugar para tomar um aperitivo antes de ir à mesa. Hoje, é o centro social do restaurante. A mudança fez com que o bartender precisasse ter o mesmo grau de excelência do chef”, explica Alberto Soria, especialista venezuelano em destilados e vinhos. “Alguns pensam ‘ah, esse papo de coquetel é um modismo’. Digo que não: os chefs que começaram a brilhar há mais de 30 anos ainda estão aí”, diz Gary Regan, um dos mais conceituados bartenders nos Estados Unidos.“O mesmo vai ocorrer com os grandes mixologistas."

Gary Regan
Cabelos brancos mal cortados e despenteados, ar de tranqüilidade e simpatia, Gary Regan é um dos maiores pesquisadores do meio. Após 20 anos trabalhando em Manhattan, decidiu estudar a história dos destilados e de sua profissão. Em posse de um vasto material — que ia de livros datados de 1800 a jornais da década de 30 —, lançou The Joy of Mixology em 2003, considerado uma das maiores obras sobre o assunto. Hoje, aos 59 anos, trocou Nova York por um sítio em Hudson Valley, escreve semanalmente em seu site (ardentspirits.com), assina uma coluna no jornal San Francisco Chronicle e cria drinques para marcas de destilados.
A exemplo de Regan, a maioria dos renomados mixologistas multiplica dígitos de suas contas-correntes no circuito de consultorias e palestras. Nessas andanças, eles acabam multiplicando, também, mulheres em seus históricos amorosos. Durante o concurso, era comum mocinhas passarem aos competidores guardanapos com telefones e e-mails ou tentarem se aproximar com a desculpa de saber mais sobre o coquetel. Ser barman faz bem para a vida sexual? “Nunca me desapontei”, diz Calabrese. Mas qual será a razão dessa tara feminina? “Pessoas criativas são mais interessantes”, aposta Regan.
Salvatore Calabrese
É necessário adicionar um detalhe: pessoas criativas e bem pagas são interessantes. Um dos mais experientes mixologistas do Brasil chega a cobrar 50 000 reais para montar uma carta de drinque e treinar funcionários. Na Europa, o valor pode chegar a 130 000 reais. Se falarmos em nomes de primeiríssima linha, o preço pode triplicar — quem banca essas quantias são redes de hotéis à procura do próximo drinque que alavanque seus estabelecimentos ao status de criadores de tendência, ou fabricantes de bebidas ansiosos por um novo sabor de vodca que domine as taças martíni. “Não existe nada mais maravilhoso do que ser imortalizado por um drinque”, diz Calabrese, criador do aclamado Breakfast Martini, mistura de gim, Cointreau, suco de limão e geleia de laranja. Mixologia parece ser a nova melhor profissão do mundo: dinheiro, viagens, status, festas, bebidas, mulheres e… vida eterna.

Drinques Vencedores
Copie duas receitas criadas por grandes barmen

Bitter Sweet Martini

Rafael Pizanti, Brasil

Ingredientes
- 1 dose de Tanqueray No Ten Gin
- 1 dose de suco de grapefruit
- 1 dose de Licor 43
-  1/8 de dose de Aperol
Como fazer
Colocar todos os ingredientes na coqueteleira com gelo, agitar e coar em uma taça martíni previamente gelada.




Gimlet Caprese

Heinz Kaiser, Áustria
Ingredientes
- 2/3 de dose de Ketel One Vodka
-  2/3 de dose de xarope de açúcar
- 1 dose de suco de limão
- 2 ou 3 grãos de pimenta-do-reino
- 3 ou 4 folhas de manjericão
Como fazer
Macerar gentilmente o manjericão com a pimenta e a vodca. Adicionar os outros ingredientes e agitar tudo numa coqueteleira com gelo. Peneirar e servir em uma taça martíni previamente gelada.